Livros

A Moral do Dano
Eduardo Medina Guimarães
Do livro "A Moral do Dano"
Eduardo Medina Guimarães

Introdução e Primeiros capítulos


INTRODUÇÃO:

 Este livro não tem o condão de encerrar o assunto, mas ao contrário busca tocar pontos práticos, relacionados com a aplicação do direito ao dano moral.

 Tenta demonstrar que ainda somos muito preconceituosos com a indenização por dano moral. Trazemos um ranço amargo, uma espécie de alienação doutrinária e de aplicação do direito.

 Em nossa prática forense, foram vários os julgamentos, casos, petições, contestações, somados às sentenças e acórdãos, onde se falava em "indústria do dano moral" ou mesmo "em um meio fácil de ganhar dinheiro", "uma forma de enriquecer" ou ainda “mero dissabor não gera indenização”, etc. Tais julgamentos "morais" sobre o dano são recheados de um preconceito e ignorância sobre a verdadeira condição do dano moral.

 Talvez, até pudéssemos supor, que estas premissas são distorcidas manipulações da verdade, uma forma de alojar no entendimento mediano uma ideia pré-formada que só diminui e enfraquece esta espetacular ferramenta que se encontra a disposição dos operadores do direito, cuja penetração tem o poder de modificar não só a realidade das partes que litigam, mas muito mais a sociedade, alavancando um futuro melhor para todos.

 Tentaremos demonstrar também como os requisitos para a concessão e caracterização do dano moral, são muitas vezes negligenciados, relevados a uma esfera mais material, exigindo provas concretas, onde na realidade, temos o vácuo da dor, dentro da ausência material da prova, temos assim, as dores da alma.

 Este preconceito sobre o que é realmente o dano moral, qual a sua abrangência e quanto caberia de indenização as vítimas, é matéria espinhenta, que atinge um "modus operandi" do direito nacional. 

 As medidas aplicadas pelos julgadores e também pelos Advogados(as) e partes, seguem uma visão restrita, baseada em si mesmo, trazendo sempre o referencial com os ganhos pessoais, se buscando um paralelo a padrões mensuráveis de ganho, sempre baseados e sobre o embalo do antigo preconceito sobre o "dano moral".

 Todos nós ainda carregamos uma estima baixa, alicerçada ainda na concepção de que este tipo de dano é no fundo a velha fórmula do ganhar muito com pouco trabalho. A imaterialidade da prova alimenta esta monstruosidade e cria esta concepção errônea de que o dano moral é o primo pobre do dano material e dos lucros cessantes.

 Este trabalho tenta demonstrar uma nova maneira de ver o dano moral, tenta girar o prisma visando outras realidades de abordagem. À medida que aumentamos nosso conhecimento sobre este tipo de dano, conseguimos baixar a neblina do preconceito alicerçado, desmascarando as reais intenções plantadas nas concepções antigas. Podemos perceber surpresos, que a aplicação do dano moral tem o condão de modificar vidas, mas não só as vidas que litigam, mas todo a extensão deste termo, alavancando um futuro melhor e mais pleno, tanto a vítima quanto o agressor, restando a sociedade a clara concepção que os caminhos violadores devam ser evitados, e com isso se aumenta o respeito mútuo e a dignificação do ser humano. Também tenta demonstrar que o valor condenatório tem de ser alto e significativo, descolado da ideia do rendimento individual, mas agregado a concepção de um ensinamento coletivo através da aplicação sistemática de uma nova cultura. 

 Como seres humanos estamos inseridos numa vida animal, e nosso aprendizado vem ainda e sempre transmitido para gerações futuras numa sequencia de nossos ancestrais. A vida moderna sedimentou nossa condição a uma enormidade de facilidades e qualificações. A medicina nunca esteve tão apurada em curas, tratamentos e evolução, o universo é uma realidade pensada e vivida pelo homem, o tempo e espaço ficaram curtos, temos comunicações cada vez mais rápidas e eficazes, o mundo firmou o conceito de pequena aldeia e nunca estivemos tão próximos uns dos outros como agora. Deveríamos estar felizes, mais plenos, mais senhores de nossas vidas, mas a realidade demonstra o contrário. As drogas já não tem o encanto de outrora, são agora muito mais destrutivas, nossas viroses em detrimento de nossa "avançada" medicina são agora incógnitas sem solução que avançam sobre nós cada vez mais especializadas e sempre sobre novas roupagens. Nossa tecnologia e rapidez de comunicação, ao invés de agregar e aproximar as pessoas, torna a cada dia maior a sensação real de solidão e desamparo entre os homens. Temos tanta ou mais miséria do mundo do que há alguns séculos atrás, mas pior do que tudo isto, estamos mais sofisticados e finos nos nossos preconceitos. Em nome do mesmo Deus ou Divindade, matamos muito mais e com maior crueldade do que épocas passadas. Sedimentamos um novo conceito de solidão, cercados de gente para todos os lados, vivemos cada qual na sua ilha. As tragédias cotidianas já são nossa rotina estampadas nos jornais e meios de comunicação em massa. Desenvolvemos formas de amor imaterial, de redes sociais que estampam a nossa verdade virtual. Hoje somos seres mais encouraçados. Andamos em lugares lotadas, dirigimos uns ao lado dos outros, cada qual fechado em seu automóvel, seja em que estação do ano for. O transporte público carrega uma massa isolada por fones, tablets, celular, embalados pela internet, não raro muitos possuem televisão ou vídeos, numa referência solitária, como se todos nós estivéssemos numa sala de espera. Desenvolvemos uma realidade virtual, a chamada "nuvem" das informações, temos milhões de dados e informações circulando sobre e entre nossas cabeças e corpos, mas cada qual isolado em seu campo, em sua própria imagem projetada. Somos hoje menos que números. Somos o registro das empresas de telefonia, somos os lares banhados pelas televisões fechadas, pelo número "ip" de nossos micros, somos nossa conta no banco, nosso cartão de crédito e outras tantas parafernálias digitais. Já não vivemos o momento, preocupados que estamos em registrar tudo com nossos celulares, visando à sustentação de nossa imagem virtual. Hoje vivemos o nosso próprio engano pessoal, criamos uma realidade embalada no sonho e sufocamos nossa condição humana pela condição sonhada, pelo ideal imaginário e abarcamos na mesma volatilidade do espaço, teimando numa vida paralela e triste, distante, abismalmente, de nossa própria condição. Nossos carros cada vez mais velozes, nossos tênis que quase flutuam, nossas casas compradas ou sonhadas com dinheiro abstrato, forçando uma realidade a cada dia mais frustrante, alimentados numa doença mundial de consumo, quem não tem, quer ter, quem tem, quer mais.

 Esta volatilidade da vida, esta abstração solitária de cada um de nós, nos afasta de nossa essência, tomando como realidade aquilo que nunca existiu.

 Frente a esta consumação da vida moderna tão abstrata, seria supor de menos, que os danos incutidos e praticados ao outro tivessem materialidade, enquanto a própria vida, a cada dia mais, se torna uma realidade intangível. É evidente que o dano praticado ao semelhante, também assume este papel corpóreo fantasmagórico. E sobre esta premissa que devemos nos debruçar. Frente a esta condição é onde reina o silêncio do dano. Portanto, todo o cuidado é pouco para se identificar os reflexos e a existência da lesão do dano. Andamos como deficientes visuais, amparados em nossa bengala como extensão de nosso corpo. Lidamos com a total imaterialidade, com a concretização do virtual, porém as sequelas são sentidas no corpo, a vivência, por mais abstrata que seja vivida, deixa marcas profundas na psique do ser, como uma tentativa de sobrevivência de uma consciência adormecida, cobrando um alto preço pela abstração do dano e da dor, da agressão e da lesão.

 Esta é a nova realidade, que bate as portas do direito, também cada vez mais virtual, e sobre o qual tentamos demonstrar a seriedade do tema e a eficaz ferramenta para o início de uma modificação social, baseada no efeito e na causa.

 Como já nos diz o poeta Mário Quintana no poema "Os Degraus":

 "Os Degraus"
 "Não desças os degraus do sonho.
 Para não despertar os monstros.
 Não subas aos sótãos - onde
 Os deuses, por trás das suas máscaras,
 Ocultam o próprio enigma
 Não desças, não subas, fica.
 O mistério está é na tua vida!
 E é um sonho louco este nosso mundo..." 


I – O QUE É O DANO MORAL?


 Todo o ato ilícito, praticado por alguém que causa dano a outrem, a um terceiro, é indenizável. Esta premissa antiga do direito tomou a relevante extensão de buscar também aquele dano invisível, não mensurável, de difícil constatação, o chamado dano moral.

 Assim, o que seria o dano moral, sendo uma lesão quase intangível, um dano que não se pode ver, constatar. Este é o grande dilema da questão. Desta forma, sem desejar abarcar num conceito a definição de dano moral, poderíamos dizer que: 

 Dano moral são todas aquelas lesões que atingem a afetividade, o emocional, o psíquico do ser humano, são também chamados danos na alma, em referência justamente a este critério volátil e imperceptível, próximo dessa ideia de alma.

 Para que se possa imaginar a existência do dano moral, há que se considerar a problemática da existência do homem, sua fragilidade a mercê da vida e sua dor filtrada pela sua racionalidade (consciente ou não) de suas ideias. A partir da constatação do pensamento, da consciência do existir em grupo, do desgaste e embate desta convivência entre os iguais, nasce a lesão praticada por outro ser humano, no sentido de incutir no lesado uma sensação próxima a tristeza, a um desânimo, uma fraqueza de reação ou simplesmente uma vergonha silenciosa, espelhada na imagem que cada um de nós constrói dentro deste grupo social.

 Esta lesão, tal qual a memória, sobrevive no mundo das ideias, retornando a todo o momento a racionalidade, alterando o real entendimento da vida, potencializando uma insuportabilidade do convívio dentro do grupo. Não raras vezes, a resposta do organismo violado é uma espécie de explicação, quase uma legítima defesa, mas que não consegue afastar a profundidade racional do dano em nossa mente.

 Poderíamos dizer que dano moral são tipicamente lesões no cérebro, no nosso mais profundo entendimento sobre nós mesmos.

 Desta forma, a atualidade e vida moderna, aumentaram e sofisticaram os danos morais a um patamar realmente a ser considerável como muito importante.

 A grande maioria das pessoas sofre diariamente investidas injustas, ilegais e prejudiciais a seu conceito próprio. Sofrem caladas, porque a vida moderna incutiu a realidade da solidão, do ser sem existir, e com isso fica o terreno fértil para o plantio das lesões. Todo o dia adentram de alguma forma na vida de milhões de seres humanos, os danos cunhados de forma industrial, e as pessoas, empilhadas e agrupadas em grandes grupos, vão lentamente perdendo a individualidade e acreditando que os danos sofridos fazem parte da própria vida, da modernidade. 

 A maior parte dos danos morais no Brasil vem embrulhada nas relações de consumo, mas também verificamos forte constatação em violações das mídias audiovisuais, basicamente a televisão aberta, dentro de programas com tendência a baixa qualidade, que buscam nas audiências o sensacionalismo popular, alavancando sucessivas violações. 

 Atualmente uma das grandes vilãs desta história, são a internet e as redes sociais. Neste caso, a descoberta da violação, a extensão do dano e sua autoria vêm dissipadas na nuvem virtual, sendo tarefa árdua a muitas vezes impossível de serem realizadas. Porém, o dano é tão ou mais poderoso do que todos. Tem o condão de criar uma lesão permanente e podem jogar a vítima a uma situação de total insuportabilidade de seguir convivendo no seio do seu grupo social. 

 O dano moral não necessita que se tenha dolo, basta a culpa em uma de suas modalidades: imprudência, negligência, imperícia e que haja um dano no final com nexo de causalidade entre ambos. Parece uma identificação simples, mas não é.

 Uma das questões mais controvertidas é justamente pontuar quando uma atitude é ilícita e tem culpa. Aos mais afoitos a resposta parece elementar: ato ilícito é tudo que é contrário à lei. Mas nas lesões de dano moral, nem sempre a lei consegue prever a maioria dos atos, forçando assim a que os aplicadores do direito tenham de fazer um esforço para encaixar a questão do dano moral.

 Em verdade, o ato ilícito para caracterização do dano moral tem uma eficácia menor. Devemos ter o ato ilícito em abordagens interpretativas mais abertas. Temos por exemple a violação por uma portaria, uma resolução de um Conselho de categoria profissional, um Código de Ética, uma norma de um clube ou mesmo uma questão baseada num direito consuetudinário (os costumes). Temos também o ato ilícito, numa conduta maldosa, que molda a terminologia da litigância de má-fé. 

 Isto faz parte de uma concepção sobre o dano moral, que necessita ser aberta, pois este dano, como já dito, é quase sempre imaterial e intangível.

 Portanto, o principal é verificar as consequências do dano, a lesão em si e suas marcas. Mas isso trataremos com mais esmero nos capítulos seguintes.
Parágrafo Novo
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